“Precisamos de vontade política para gerar ações que combatam a fome”, diz economista

3 de outubro de 2023
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21 milhões de brasileiros não tem o que comer diariamente 

O Brasil tem 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança alimentar, segundo o relatório global Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo. O nível mais extremo provocado pela insegurança alimentar atingia 4,7% da população do Brasil entre 2020 e 2022. O estudo classifica a insegurança alimentar severa como um nível de gravidade em que, em algum momento do ano, as pessoas ficam sem comida e passam fome. Já a fome é uma situação duradoura, que causa sensação desconfortável e dolorosa. Por fim, a insegurança alimentar moderada é aquela em que as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e são obrigadas a reduzir, em alguns momentos do ano, a qualidade e a quantidade de alimentos que consomem.

Para Maurício Prado, economista do Plano CDE, empresa de pesquisa e consultoria de avaliação de impacto especializada nas famílias das classes CDE no Brasil, o aumento nos preços dos alimentos e de outros itens das despesas das famílias faz com que o poder de compra de alimentos caia, uma vez que a renda delas não acompanhou esse aumento. Ou seja, o trabalhador continua tendo a mesma renda, mas consegue comprar menos coisas por causa da alta nos preços dos produtos gerada pela inflação.

Maurício Prado

Ainda segundo o especialista, o aumento do desemprego também impacta a fome, uma vez que a família deixa de ter uma renda com que contava todo mês. Até conseguir uma nova fonte de renda, essa família passa a contar com menos orçamento para pagar suas contas. “Temos que lembrar que nem todo mundo tem emprego CLT, logo o seguro desemprego para ter uma renda fixa por um período”, explica. 

Descascar mais e desembalar menos

O restaurante Organicamente Rango leva aos moradores da periferia do Campo Limpo, no extremo sul de São Paulo, uma comida gostosa, “sem frescura” e que utiliza alimentos orgânicos. Nas periferias é muito comum encontrar os “desertos alimentares”, termo utilizado para definir locais onde o acesso a produtos in natura ou minimamente processados é difícil. A pessoa que mora nesse local precisa andar muito para encontrar algo assim.

Para Thiago Vinicius, empreendedor social e criador do projeto, o termo “comida de verdade” é aquilo que você tem na mesa.  “Não posso falar que macarrão instantâneo não é comida de verdade, sendo que muitas vezes é só aquilo que uma mãe tem pra dar pro filho. O governo precisa investir em hortas para as pessoas terem mais acesso a alimentos orgânicos”. Thiago luta contra uma realidade comum nas periferias: a pouca oferta de frutas e verduras frescas e o alto consumo de produtos ultraprocessados. “Quem faz o sushi, a comida italiana, a comida marroquina, a comida americana, são as pessoas que vêm da quebrada. São pessoas que manjam muito de comida, tá ligado? A gente sabe que todas as cozinhas do mundo estão nas favelas”, afirma. 

Thiago Vinicius

O economista Maurício explica que há uma perspectiva de diminuição da fome no país com menos inflação, mais empregos e melhores políticas públicas para os mais vulneráveis. Para ele, a consolidação dos novos valores do Bolsa Família é uma das políticas que ajudam a reduzir a fome. “A fome aumentou no Brasil por vários motivos, sendo os principais: queda da renda das famílias e desemprego devido à crise econômica e pandemia e aumento da inflação que reduziu o poder de compra das famílias. Precisamos de vontade política para gerar ações que combatam a fome.” 

Além disso, outras políticas impactam a fome das famílias mais vulneráveis como a merenda escolar e o almoço das escolas em tempo integral. “Há um desafio para as grandes cidades, nas quais os aluguéis são muito elevados e o programa de renda mínima é insuficiente para manter as famílias que não tem casa própria. Nesses territórios, programas de habitação popular são muito importantes para oferecer uma segurança a estas famílias e reduzir o risco de entrarem em situação de fome, assim como programas de oferta de refeições populares e de emprego”, analisa Maurício. 

O asfalto precisa dar espaço à terra 

O dono do Organicamente Rango explica que a alimentação do brasileiro é rica pelo país que carrega cultura alimentar e é um grande produtor de comida. “Cada brasileiro tem uma receita da mãe e da avó, e isso é uma parada rica que tem influências africanas, do norte e nordeste do nosso país. Quanto mais uma pessoa ribeirinha é, mais cultura alimentar ela tem. São as mães da favela que vão cozinhar para as mães da classe média e alta”. 

Para diminuir a fome, Thiago explica que é preciso criar hortas, sacolões públicos em escolas públicas e em prédios da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), empresa que constrói e financia moradias populares voltadas para pessoas de baixa renda. “O fortalecimento, de verdade, do salário mínimo ajudaria também para as pessoas terem acesso a comidas saudáveis. A fome tá presente aqui desde que o primeiro escravo chegou no Brasil. O problema da desigualdade social começou com a exploração do corpo negro para conseguir riquezas e posses. Até hoje temos manobristas e elevador de serviço, por exemplo. Quando a gente vencer essas coisas, vamos vencer a fome, pois não é só fome de comida”. Segundo Maurício, as pessoas mais afetadas pela fome são as famílias das classes D e E, que são famílias que ganham até R$ 2.400,00 para 4 pessoas, ou R$ 600,00 per capita. Hoje no Brasil temos cerca de 50 milhões de pessoas nessa faixa de renda, o que é mais que a população de um país como a Espanha.