“O policial engatilhou a arma e eu pensei ‘morri’”, diz sobrevivente do massacre do Carandiru
Maurício Monteiro relembra dia que 111 presos foram mortos no maior massacre no sistema prisional da América Latina
Naquela sexta-feira, 2 de outubro de 1992, 111 homens foram mortos pela Polícia Militar de São Paulo, dentro do complexo do Carandiru, na zona norte da capital paulista – o maior massacre no sistema prisional da América Latina. Mas, segundo Maurício Monteiro, de 53 anos, um dos sobreviventes, o número de vítimas chega a 148. “Os policiais chegaram atirando para matar. Deram facada, atiraram com fuzil e soltaram os cachorros em cima dos presos. Eles deram um tiro que pegou no cara que estava no fim do corredor. Lembro de ver ele escorregando na parede igual uma sanfona. Quem ajudou a carregar os corpos, morreu depois. E quem estava ferido, foi levado para a enfermaria e também foi assassinado”, detalha Maurício.
A polícia invadiu o local com a justificativa de controlar uma rebelião na penitenciária. Da cela 313, no terceiro andar da casa de detenção, Maurício viu a movimentação dos policiais entrando no presídio. “Não houve rebelião. Tudo começou quando dois presos começaram a brigar, mas a confusão logo foi apaziguada”. Devido ao tumulto após a confusão, os seguranças retornaram ao pavilhão para fechar as celas. Mauricio recorda que, como ainda não era o horário de tranca, alguns presos debateram com os seguranças. “Ao contrário do que o filme (Carandiru: O Filme) mostrou, não houve conversa. Os caras da Rota já entraram dando tiros”.
“Condenado não está, culpado não é”
Preso em 1990 pelo crime de sequestro seguido de extorsão, Monteiro estava na porta da cela quando ouviu os primeiros tiros e viu os policiais se aproximando. Ele tentou se esconder atrás de uma cortina do banheiro improvisado, num dos cantos da cela. “O policial engatilhou a arma na minha cabeça e, quando ia atirar, um tenente impediu. Ele disse que estava fazendo o que podia e mandou a gente ficar de cueca no pátio. Ainda avisou que era para todo mundo sair sem olhar para os policiais, pois eles estavam matando todo mundo. Tinha gente com mais de 70 tiros nas costas”. Momentos depois, apenas de cueca e com as mãos na cabeça, os presos precisaram descer. Pelo caminho, dezenas de corpos empilhados, e policiais enfileirados para agredir os presos. A prática é conhecida como “corredor polonês”.
Filho de policial e irmão do meio, Maurício nasceu e foi criado em uma periferia da zona leste de São Paulo. Entrou no mundo do crime após, segundo ele, seu irmão mais velho ser assassinado pela polícia durante uma abordagem policial. “Meu irmão não era bandido e mesmo assim foi abordado e morto pela polícia. Aquilo me revoltou e fez com que eu entrasse no crime”. Depois de cometer diversos delitos, Monteiro passou 16 anos preso por mais de 10 presídios. Foi uma namorada que fez o último questionamento antes dele tomar a decisão de sair do mundo do crime. “A gente estava junto há três meses e mesmo assim ela foi me visitar na cadeia. Ela disse que eu já tinha escolhido uma porta, que eu já sabia o que tinha atrás daquela porta e que eu precisava escolher outra para mudar de vida. Isso juntou com todos os conselhos da minha família, eu decidi mudar naquele momento e comecei a estudar”.
O Carandiru abrigava 7.500 detentos, quase o dobro de sua capacidade. No dia do massacre, Maurício lembra dos momentos de terror e das cenas que não serão esquecidas. “Vi um cachorro arrancar os órgãos sexuais de um preso que estava na minha frente. Um colega caiu da escada durante a confusão e quando chegou embaixo, o policial enfiou um facão no peito dele, que foi sair nas costas. Lembro de ver um policial atirando com fuzil em um dos presos que foi escorregando na parede até o chão”.
“Era um país e cada pavilhão era um estado”
Durante o massacre, Maurício só lembra de tentar sobreviver. “O psicológico entra em modo de sobrevivência. Eu pensava na minha família e nos meus filhos pra não ficar louco. Teve gente que surtou e usou droga para ficar doidão, pois o clima estava tenso”, afirma. Segundo ele, no dia seguinte os próprios presos carregaram os corpos, que por sinal foram levados por caminhão de lixo. Mauricio passava o tempo na cadeia planejando novos crimes e segundo ele, a educação é o primeiro passo para a ressocialização. “O Estado precisa focar na educação. O diretor do presídio quer que o detento fique preso na cela e não solto pela cadeia estudando, para não causar problema pra ele. E aí quando o preso é solto, chega em casa e vê a família passando fome, não tem estudo, não consegue arrumar trabalho, ele volta a cometer delito.”
Recomeço
Fora da prisão desde 2011, depois de cumprir sua pena, Maurício se formou em Gestão Ambiental e trabalha como monitor na antiga Casa de Detenção, o Espaço Memória do Carandiru, localizado na zona norte da capital, que funciona no prédio onde era o pavilhão 4 — um dos dois únicos não implodidos após a desativação do complexo penitenciário. Hoje, ele tem um canal no YouTube chamado “Prisioneiro 84.901”, onde produz conteúdo sobre assuntos ligados ao cotidiano de presos. “84.901 é meu número de entrada no sistema prisional. Hoje, mesmo depois de ter cumprido pena, se a polícia me para, puxa esse número e vê meus antecedentes. É uma marca para sempre.” Maurício também dá aula de boxe para crianças e adolescentes atendidas pelo Irec (Instituto Resgata Cidadão), criado por ele e pela família.