“Será que a gente vai comer hoje?”, venezuelana conta experiência de migrar para o Brasil 

23 de outubro de 2023
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A professora atravessou o país em 2018 com algumas malas e seu único filho

A venezuelana Fran Castellar, de 46 anos, chegou ao Brasil em maio de 2018 pela fronteira dos dois países, localizada na cidade de Pacaraima, em Roraima. Fran viajou com seu único filho, na época com 13 anos. Em algumas malas, carregou o que restou da vida anterior e sem saber o que a esperava, trouxe até uma manta caso precisasse dormir na rua. “Eu vim preparada para tudo. Cheguei aqui sem saber nada de português. Não sabia nem cumprimentar as pessoas. Minha mãe fez uma manta pra mim e pro meu filho pra gente não passar frio na rua,” conta.

Formada em educação, Fran escapava da crise humanitária em sua terra natal. Com trabalho árduo e determinação, ela superou desafios financeiros, oferecendo serviços de limpeza em troca de moradia em uma pensão em São Paulo. “Num primeiro momento, os donos da pensão não aceitaram, mas depois concordaram e me ajudaram, inclusive com toda a documentação. Eles me ofereceram água quente, comida e moradia em troca dos meus serviços. De manhã eu limpava a pensão e à noite dava aula de espanhol”. Após abandonar uma vida estável em uma petrolífera, ela encontrou na música e no ensino de espanhol uma nova perspectiva em solo brasileiro.

Após uma viagem de um dia e meio, Fran cruzou a Venezuela de ônibus, táxi e parte do caminho a pé. “Lá tem um meio de transporte ilegal onde as pessoas atravessam a fronteira com o Brasil. No meio do caminho eu levei um golpe, fui roubada e abandonada no meio do caminho antes do local combinado. Escondi uma nota de 20 dólares em uma caneta e foi com esse valor que eu consegui seguir caminho e chegar no Brasil”. Ela e o filho foram recebidos pelo Exército Brasileiro, responsável pela Operação Acolhida que possui três pilares: (1) Gestão de Fronteiras, que proporciona aos refugiados acolhimento, documentação e cuidados médicos; (2) Abrigamento, incluindo alimentação, educação, cuidados e proteção social; e (3) Interiorização Voluntária para outras partes do Brasil.

O Caminho

Fran fugia da dura realidade enfrentada em seu país. Desde 2018, a Venezuela enfrenta uma intensa crise humanitária, nas esferas política, econômica e social. “A gente vai para o supermercado e não encontra comida. Vai nas farmácias e não tem remédios. Não conseguimos emprego e grande parte da população vive de comércio informal”, relata.  Após chegar em Pacaraima, ela e o filho foram para casa de um de seus irmãos, que morava em um cômodo com sua família, ao todo nove pessoas. “Eles nos abrigaram por uma noite e depois seguimos para São Paulo, onde estava outro irmão. A gente morou por seis meses numa pensão no centro da cidade”.

“A vida lá era incerta”

A história de Fran é a mesma de 717.947 venezuelanos que entraram no Brasil de janeiro de 2017 a março de 2022. Pelo terceiro mês seguido, o Brasil bateu recorde na entrada de venezuelanos em seu território. Em março de 2023, 17.471 migrantes entraram no país, segundo levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Em três meses de 2023, o Brasil registrou a entrada de 51.838 migrantes e refugiados. Isso representa 32% do registrado em 2022.

Com falta de comida e remédios em seu país de origem, a professora se viu obrigada a deixar tudo para trás e buscar acolhimento em outro lugar. “A vida lá era incerta. Eu acordava e ia dormir pensando no que eu ia comer. O Brasil é o paraíso se comparado a Venezuela. Eu queria que meu filho se tornasse um homem de caráter, por isso vim para cá. Lá, todo mundo pensa em si e mais ninguém. Eu precisava tirar ele daquele lugar”, desabafa.

Caritas

Com lágrimas nos olhos, a professora de espanhol relembra do momento que precisou decidir sair da Venezuela. “Não me programei financeiramente para sair de lá, então uma prima me ajudou e eu vendi tudo o que tinha. Eu queria ir para Argentina, mas o dinheiro só deu pra cá. Eu me formei em educação, então dei aula de espanhol por mais de 10 anos no meu país. A sala de aula me causou muito estresse e eu cheguei a ficar doente. Quando vim para o Brasil, sabia que poderia voltar a dar aula ou cantar. Eu sempre cantei por hobbie, mas era uma das cartas que eu tinha na manga para sobreviver aqui”, relembra.

Fran se apresentava em bares para pagar a faculdade de letras na Venezuela e quando chegou em solo brasileiro, voltou a se apresentar. Hoje, Fran faz parte de uma orquestra, canta em algumas bandas e dá aula de espanhol. “A instabilidade da vida financeira é o que me preocupa aqui, mas pretendo envelhecer neste país. Viver da música é incerto e eu já adoeci por conta do estresse da sala de aula, então viver de música é o sonho”.