Pesquisadora da Fiocruz analisa desafios no combate à pobreza menstrual: “causa sofrimento”

10 de dezembro de 2023
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1,5 milhões de meninas e mulheres brasileiras vivem em residências sem banheiro

A pobreza menstrual é o nome dado à falta de acesso a produtos higiênicos, assim como ao saneamento básico, banheiros e água encanada, para manter os cuidados no período da menstruação. Cerca de 37% das jovens brasileiras já usaram algum produto substituto pela falta de dinheiro para comprar um absorvente, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Projeto Novo Ciclo, iniciativa do Espro (Ensino Social Profissionalizante), em parceria com a Inciclo, empresa que comercializa coletores menstruais. Os dados variam significativamente de acordo com renda e raça. 32% das entrevistadas se declaram brancas e 42% negras. Dentre as meninas e mulheres negras pertencentes a famílias com renda de até dois salários mínimos, a porcentagem chega a 47%.

A doutora em Saúde Pública e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Laís Silveira Costa, analisa a importância de se pensar políticas públicas voltadas para pessoas que menstruam. “Precisamos de uma campanha cultural para mostrar que a pobreza menstrual é uma questão que afeta todas as pessoas, portanto, é do interesse de todos. É responsabilidade de um país como o Brasil, que tem um sistema universal de saúde, produzir informação sobre o tema”.

Laís Silveira Costa

Dignidade menstrual

Aos 16 anos, Julia de Almeida Lins é líder Girl Up, movimento que treina, inspira e conecta meninas para que sejam líderes e ativistas pela igualdade de gênero. A jovem explica que a pobreza menstrual é basicamente a falta de itens de higiene, condições de saneamento básico e instrução durante o período da menstruação. “Essa carência não se restringe só aos absorventes. Sabonetes, papel higiênico, medicamentos, água e outros produtos também estão atrelados à higiene durante a menstruação. A precariedade menstrual pode estar em qualquer lugar, mas afeta principalmente as meninas negras e residentes dos seguintes estados: Maranhão, Pará, Roraima e Acre”.

Julia de Almeida Lins

A pobreza menstrual também interfere nas relações pessoais e profissionais das mulheres: a indisponibilidade de um absorvente já fez com que 32% delas deixassem de ir a alguma festa ou evento, 20% perdessem um dia de aula e 11% faltassem ao trabalho, segundo a pesquisa realizada pelo Projeto Novo Ciclo. “Falando como mulher, acho que temos pouco apoio quando acontece o vazamento durante o período menstrual, por exemplo. Isso é tido com um tabu e causa vergonha, sendo que é algo natural e isso afeta a saúde mental e bem-estar das pessoas menstruantes”, analista Laís.

Desigualdade

Muitas vezes, meninas e mulheres precisam escolher entre suprir uma necessidade básica ou outra. Nessas situações, absorventes, sabonetes e até água limpa acabam se tornando itens de “luxo”. Segundo a Defensoria Pública do estado do Rio Grande do Sul, “a violência de gênero pode ser definida como qualquer tipo de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra alguém devido a sua identidade de gênero ou orientação sexual”. De acordo com a Girl Up, a privação de itens de higiene pessoal pode ser caracterizada como violência de gênero, já que os impactos desse tipo de ação não se restringem apenas à falta de absorventes, mas também a degradação da saúde física e mental da pessoa. “Isso é também considerado um problema de saúde pública, afinal, afeta diretamente a saúde de meninas e mulheres no país”, explica a líder do movimento, que complementa dizendo que os três pilares da pobreza menstrual são: Falta de acesso a produtos de higiene básica; Falta de saneamento básico; e falta de acesso à informação.

A pobreza menstrual atinge grupos mais vulneráveis, como moradores de rua, população carcerária e pessoas em situação de pobreza.  “Essas mulheres enfrentam barreiras para cuidar da sua saúde e a pobreza menstrual produz mal-estar e sofrimento. Essa é uma questão que exige iniciativas de vários segmentos, e segue sendo ignorada por causa de uma série de tabus em torno da própria questão da menstruação, como se fosse algo que interessasse somente a mulheres”, afirma a pesquisadora da Fiocruz .

A Girl Up é um movimento criado pela Fundação das Nações Unidas e segue trabalhando junto a uma comunidade global de parceiros para alcançar a igualdade de gênero em todo o mundo. O movimento foi pioneiro nas pesquisas sobre pobreza menstrual e incentivo a criação de políticas públicas para solucionar esse problema, hoje contam com 9 projetos de lei Estaduais aprovado e mais de 40 municipais. Para as mulheres terem mais conforto nesse período, Julia analisa quatro pontos: “em primeiro lugar, a criação e implementação de políticas públicas, distribuição de absorventes em postos de saúde públicos, incentivo a conscientização de jovens sobre saúde íntima e menstrual, e investimento em saneamento básico seriam bons pontos para começar a caminhada até a dignidade menstrual”.

Constrangimento na escola

Por falta de absorventes/meios de conter sua menstruação, muitas meninas acabam deixando de ir à escola durante o período menstrual, afetando diretamente seu desempenho escolar. Além da situação precária de saneamento básico e apoio à essas meninas dentro da escola, os colégios não estão preparados para receber pessoas que menstruam. Segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PENSE) do IBGE, cerca de 3% das alunas frequentam escolas sem banheiro em condições de uso, um dado que parece pequeno, mas que representa todo um universo, 213 mil meninas, sendo 65% delas negras.

“Não podemos excluir nenhum corpo”

A pesquisadora da Fiocruz comentou também sobre o guia para o cuidado menstrual de pessoas com e sem deficiência criado pela Fundação Oswaldo Cruz. O guia tem o objetivo de apoiar jovens que menstruam e suas famílias, profissionais de saúde, assistentes sociais e educadores a reconhecer que vários corpos experienciam a menstruação, a exemplo de meninas, mulheres, homens trans e pessoas de gênero não binário. “O projeto teve o objetivo de jogar luz sobre as questões específicas das pessoas com deficiência que tem sido ignoradas nas linhas e nas ações de saúde. O guia surge da ausência de informação e discussão sobre a menstruação nesses corpos”, explica Costa.

São 16 páginas explicando de forma educativa como funciona todo o processo do ciclo menstrual e como ele está ligado à saúde e ao bem-estar físico e mental. O guia apresenta informações sobre as características, os sintomas e também como se cuidar durante o ciclo. Ensina o que evitar para não ter problemas de saúde, passar por constrangimentos, situações de vulnerabilidade e como adquirir absorventes junto às equipes de saúde da família.